CONTOS DO IMAGINÁRIO: A CASA MISTÉRIO

A casa com cara de abandonada estava com o quintal coberto por folhas e o interior coberto por teias de aranha. Por dentro, era escura e tão antiga quanto o exterior demonstrava. Alguns lustres, papel de parede gasto, janelas trincadas, piso e móveis de madeira. O dono, uma pessoa com ansiedade, começou a sofrer de terror noturno e acreditava que o local ajudava a piorar o quadro.

9 de Espadas

O processo de projeto iniciou com o psicanalista do Arquitetura do Imaginário. O proprietário da casa, deitado no divã, começava quase sempre ouvindo o mesmo:
“Feche os olhos e imagine um céu azul coberto por nuvens. Você sabe que as nuvens são seus pensamentos. Você imagina que as nuvens começam a se dissipar, limpando o céu. Conforme faz isso, você limpa sua mente e os pensamentos vão se dissipando. Agora você está em um gramado, de frente para uma escada de pedra no chão, que desce para o subsolo. Você começa a descer os dregraus contando até o 21 e a cada número, a cada degrau, seu corpo fica mais pesado e mais você vai adentrando no seu subconsciente. Um, dois, três..” “…Então você desce o último degrau e, na penumbra, consegue ver uma porta. Você segura a maçaneta e sente o metal frio. Sente a polidez no arredondamento das bordas e o peso da maçaneta. Você gira e empurra. A luz entra e você está em uma sala iluminada. A sala de controle da sua mente.”

As sessões de hipnose descobriram traumas de infância relacionados à família e que eram amplificados pela casa, que passava um ar fantasmagórico. O espaço parecia convidativo para memórias sombrias que se transformavam em medo. Esse medo era projetado nos sonhos como uma figura feminina que em diversos pesadelos se posicionava atrás do morador, movimentando a mão em direção à sua cabeça, na tentativa de controlar seu mental. Eram suas memórias de infância e seus algozes tentando controlá-lo.
“Imagine essa mulher. Você está em um ambiente controlado, então não precisa ter medo. Visualize bem como ela é. Dessa vez, você não vai ter medo. Você vai encara-la sem reagir. Ela se assusta com a sua tranquilidade e confiança. Ela está apavorada por não estar tendo efeito sobre você. Você a segura pelos pulsos, fecha os olhos e imagina uma luz branca irradiando dentro do seu peito. Ela vai aumentando exponencialmente, saindo de você, emanando luz para o entorno. A figura grita enquanto desaparece e todo ambiente sinistro à volta de dissolve. O cenário antes escuro amanhece. Sons de pássaros e sinos de vento.”

O morador percebeu que a sessão de psicanálise à volta da casa, conforme trabalhava coisas profundas que se refletiam na relação com a casa, modificava também sua relação com o mundo. Sentiu mais confiança em suas relações pessoais, se abriu para experiências de mais adrenalina, passou a dormir melhor e ser mais proativo. Na última sessão, chegou ao seu auge. Ele se preparou para caçar. Ao entrar no estado de hipnose, imaginou a rua onde morava. Estava de noite e conseguia ver, em frente á sua casa, mais ao final da rua, a figura feminina dos seus pesadelos. Ela correu para dentro da casa. Ele colocou no rosto a mascara que segurava na mão e correu atrás dela. Era ele que à assustava até o amanhecer. Então a casa, exorcizada de seus demônios, começou a tomar outra forma.

Ao final desta sessão, o cliente pôde descrever para o arquiteto o espaço que imaginou após derrotar seus medos. O elemento mais nítido era a luz do sol entrando, como se estivesse expurgando as sombras do local. Tocando com calor todas as superfícies do interior, inclusive a pele. O espaço antes parecia pequeno e ficou amplo. Foi seguindo o imaginário do habitante que o projeto abriu rasgos nas paredes e pensou as demais intervenções.

Retirado de: Até Onde Eu Puder Ir

O teto da sala foi aberto até o último andar e, na cobertura, foi colocado vidro. Diversas portas que antes escondiam salas vazias agora se abrem para espaços de diferentes usos. Um quarto com instalações que pendem do teto, outro com projeções e um outro cheio de plantas de todos os tipos. Uma sala vazia onde passou a praticar meditação e artes marciais. Uma biblioteca cheia de estantes de madeira e com grandes esquadrias de vidro que dão para o paisagismo do jardim lateral. Esse espaço que mistura a escala do antigo, com o pé direito bem alto e grandes ripas de madeira no piso, se mistura à um ar moderno, com a esquadria metálica preta e as paredes todas brancas, passou a ser usado como home office.. O mistério na casa passou a ser um elemento sedutor.

Retirado de: Jornal DR1html

Ele manteve apenas o sótão como era, escuro e sombrio. Decidiu guardar ali suas sombras, onde as visita constantemente, sem prejudicar as demais áreas da casa e sem afetar outras áreas de sua vida. Deixou ali fotos e pertences dos antepassados, que passou a cultuar em samhain. Precisa passar pelo sótão para chegar à intervenção feita na varanda deste; uma escada de marinheiro fixada na parede da fachada. Essa escada leva à cobertura, onde tem uma vista ampla do céu. “Quando chego ao terraço, tenho a sensação de que se abrisse a boca e puxasse o ar, engoliria a noite.”

O primeiro passo foi entender o imaginário por traz do habitar. A relação com a casa se relacionava com medos. Essa relação foi levada para a linguagem do imaginário para ser trabalhada, assim como levamos um fenômeno, como um objeto caindo, para a linguagem da matemática. Transformando o fenômeno em números, podemos analisá-lo e intervir. No nosso caso, a operação foi feita a partir da linguagem do imaginário. A partir da representação desses medos, que acontecia nos sonhos através da figura feminina, aconteceu uma transformação na construção do imaginário. A arquitetura da casa acompanhou esses movimentos como uma representação desse embate. Conforme o sonhador atacava no imaginário seu algoz, janelas se abriam na casa e o sol atacava a escuridão. Flores se espalharam pelo brise criado na fachada ao mesmo passo que sua coragem invadiu seu interior.

Magia é a capacidade humana de criar linguagens para entender e transformar a matéria em conjunto com o espiritual. Arquitetura é uma das suas muitas linguagens.

Linguagem, Magia e Arquitetura

Magia é criar uma linguagem para trabalhar no material e gerar uma movimentação dupla no espiritual. A linguagem permite conectar dois planos diferentes. Através da matemática conseguimos transformar fenômenos em números para estudá-los e até mesmo prever coisas. Por exemplo, o tempo que uma pedra de peso x, caindo de uma altura y, levaria para chegar ao chão. Além de analisar, conseguimos transformar, manipular, intervir. Meditando, posso criar a seguinte linguagem: nuvens como representação do meu subconsciente para pensamentos. Então, eu fecho meus olhos e imagino nuvens se dissipando. E conforme essas nuvens vão se dissipando, meus pensamentos vão limpando. Se eu estou com dor, imagino uma esfera de luz branca aumentando na região. Conforme essa luz aumenta, a dor diminui. O famoso boneco voodoo consiste justamente em criar uma representação para alguém de forma que seja possível, ao interagir com o boneco, atingir a pessoa. O santo usa da fumaça e do álcool como elementos que representam no material outros elementos do espiritual, que agem para a limpeza energética, assim como uma palavra em um idioma encontra seu significado também em outra língua. Por isso magia é linguagem. Magia é entender como mexer a mão para fazer mexer a sombra. Pois o que está em cima é como o que está embaixo. Entre os dois, existe algo fundamental para a realização do trabalho mágico: intenção. Em seguida, trabalho.

Arquitetura também é linguagem. Seus elementos, materiais, formas, tamanhos, criam composições espaciais, não apenas visuais. São como palavras que compõem uma poesia. A justaposição de palavras pode criar um ritmo, um sensação, como a do movimento das ondas em um poema sobre o mar. Ao articular de forma precisa certos elementos, pensando de forma sensível a relação entre eles, a arquitetura evoca um Genius Locci. O espírito do lugar. Aquela vibe, aquele coisa diferente no ar. Como a fotografia de um filme. Até saber o que era isso, eventualmente via um filme em que algo me encantava, mas não sabia o que. Essa articulação de elementos arquitetônicos pode invocar manifestações de desejos que ainda não haviam se mostrado. Uma cobertura feita em um antigo galpão de trem, na frente de um calçadão á volta de um estádio, fez com que aquele espaço, onde está a cobertura, fosse ocupado por atividades que antes não aconteciam ali. Claro, a cobertura garante sombra e abrigo da chuva. Mas não é apenas em dia de sol forte ou chuva que as pessoas se concentram ali. Para além dessas funções óbvias, a cobertura delimita um espaço junto as paredes desse galpão aberto, que é super poroso. Essa delimitação precisa, transforma um espaço qualquer em um tipo de terreiro; um local de transformação. Um teto alguns centímetros mais baixo, um número diferente de aberturas, um material diferente ou uma parede à mais no meio do espaço, já o torno diferente, fazendo com que os fenômenos, as atividades que acontecem ali, também mudem.

Imediatamente á frente, entre o galpão e a calçada, escadas de concreto, acompanhando o chão, como uma mini arquibancada ligando o desnível do galpão para a calçada. Na parte interna e externa do galpão, diversas atividades acontecem ao mesmo tempo. Aulas de dança, Crossfit, artes marciais. No calçadão, barraquinhas e foodtrucks formando, sobreposta ao caminho, uma praça de alimentação pública. Toda essa movimentação torna o entorno mais seguro e agradável de morar. A composição do galpão, articulando elementos materiais, articula também energias. Se relaciona com a cidade e com o mundo à volta do galpão. Cria um imaginário de cidade onde é agradável estar no espaço público e permite aos corpos criar uma outra relação com este. Assim como xangô é um orixá que representa uma força da natureza, o trovão, acredito que a cidade possua suas entidades, que representam suas forças. Chamo de Dante a força e a rigidez presente no concreto armado, que sustenta grandes edifícios, presente no trânsito, que é o adensamento do fluxo, no asfalto e nos viadutos. Dante tem predominantemente a energia Yang, o masculino. Em contrapartida, Lina é a leveza das ciclovias, o fluxo de pessoas que por vezes convergem em rodas de samba, arquiteturas leves e com materiais naturais, terraços e janelas que permitem o sol e o vento invadir o interior do edifício. Lina, tem predominantemente a energia Yin. Assim, crio uma linguagem. A partir dela, imagino embates entre essas entidades, coerentes com os conflitos que acontecem no espaço construído, e penso a cidade a partir desses embates. A partir da cidade que imagino, penso um edifício nessa cidade e como ele se encaixa nela. A partir do edifício, posso pensar um projeto de interiores e assim ir reduzindo a escala, projetando até mesmo uma simples gaveta. Mesmo uma gaveta deve estar inserida em um projeto de cidade.

Arquitetura, como uma linguagem, como magia, intermedia a relação entre a mão e a sombra. Um grupo de objetos soltos, é apenas um grupo de objetos. Mas quando entende-se a propriedade espiritual de cada um, quando entende-se o objeto como uma representação material de algo em outro plano, é possível posicionar esse grupo de objetos de forma à criar uma composição. Essa justaposição cria um significado capaz de nos deslocar, de alterar nossa percepção. Isso é Arte. No tarot, o mago utiliza das suas ferramentas, que representam os 4 elementos, para trazer para um plano mais denso o que consegue captar de um plano mais sutil.

Os Véus

[O texto original é apenas na cor preta. As anotações em azul foram feitas posteriormente, incluindo a linguagem da arquitetura. Sendo assim, fique a vontade para ler tudo junto ou pulando as partes em azul.]

a vida é uma energia que quer flutuar
como uma esfera de ar quente que precisa ser revestida para ganhar forma
cobrimos a vida com um véu
mas é importante que o véu não se imponha demasiadamente


[a arquitetura é como o véu que reveste o espaço
concentrando as energias que ali circulam, em uma forma ou outra]


para não fazer com que o balão de ar quente caia
é preciso soltar alguns pesos do balão
para poder voar mais alto
você não está vivendo o melhor da sua vida agora
porque tem dentro de si coisas que insiste em não abrir mão
é uma escolha inconsciente, que apenas repete padrões de comportamento
a meditação ajuda a tirar o excesso de peso desse véu
permitindo sentir melhor essa brisa

[Percebe-se na arquitetura, ao longo do tempo, um movimento de tornar-se mais leve. Saem os adornos desnecessários, usa-se mais o vidro.. Atualmente, a receita de bolo é retirar paredes e integrar ambientes. É necessário estudar a arquitetura em vez de recorrer à soluções genéricas pois, tirar levianamente resistências ao espaço, como paredes, podem torna-lo deficiente, perdendo potência.]


que faz o sol parecer tocar a pele de um jeito diferente
que nos lembra a experiência da vida que percebemos em nosso nascimento
como um novo sopro de ar fresco nos pulmões
vida atrai vida
precisamos nos conectar com coisas que sejam feitas de vida
não de plástico

[É importante que a arquitetura seja feita de vida, principalmente em seus materiais.
Madeira, terra, até mesmo o concreto aparente. Evitando ao máximo materiais que imitem outros, que tenham apenas questões visuais, esvaziados em seu interior.]

criamos quando cobrimos com um véu uma energia, uma concentração de ar quente
assim materializamos
o ar quente é uma energia doadora, como a água dentro de um copo
preenche o recipiente
o véu é como o copo, que está em receber, em ser preenchido

[Portanto, a arquitetura não é nada além de um recipiente para essa energia
para uma cultura, para as relações interpessoais, para os embates de forças travados na cidade, como disputas de discurso e território]


a experiência da vida não é o véu, nem a esfera de ar quente
é o contato entre essas partes, assim como o contato de dois fios desencapados gerando faíscas

[Arte é o ato de criar recipientes a serem preenchidos pelas energias. Arte é magia]

Mundo por vir

“Fugir, meu bem, pra ser feliz, só no Polo Sul. Não vou mudar do meu país, nem vestir azul.”

Ouvi uma vez da coordenadora do curso de arquitetura e urbanismo, Iazana Guizo, que se queremos gerar qualquer mudança, o Brasil é o melhor lugar, pois aqui concentram-se os problemas do mundo: desigualdade, preconceito, corrupção, ignorância.

Vejo hoje como uma questão de maturidade aceitar que o mundo qual eu quero ajudar a construir muito provavelmente não contemplarei. Independente dessas eleições, os últimos anos mostraram o quanto temos que aprender como seres humanos e nosso processo não se encerra com o resultado das urnas.

É preciso organização e ação, pois os maus já o fazem há tempos. É preciso entender a nossa responsabilidade sobre o futuro do planeta em vez de apenas fecharmos os olhos para curtimos nossas vidinhas fúteis. É preciso dialogar com o mundo e conhecê-lo a partir do que ele fala, pois essa é a única forma de fazer a coisa certa, e isso se chama ética. É preciso conhecimento (conhecimento de verdade, não o da internet), pois a desinformação é a principal arma dos perversos. É preciso preservar o que importa, para que sobreviva ao que está por vir. É preciso um pouco de utopia, pois aceitar o que vivemos como “mundo real” já é a derrota. O mundo como o vemos vem sendo construído dessa forma, e podemos construir de outra.

Por fim, para quem já viu Sandman(Netflix): que sejam a besta do apocalipse, nós seremos esperança.

ARQUÉTIPOS ARQUITETÔNICOS – REI DE OUROS

Rei de Ouros – Light Seer’s

Quero que ao chegar a casa, depois do trabalho mais ordinário
da função mais alienante,
no cenário político mais sufocante,
você possa existir.
Pegar sua guitarra velha e um copo da sua bebida favorita
ou imergir nos seus livros, como um rei em sua biblioteca particular.
Uma cozinha espirituosa, repleta de temperos da sua própria horta
onde possa realizar sua alquimia.
Que você tenha um lugar para se deitar, onde entra a luz da lua
que seja tão mágico, capaz de blindar a alma contra o mundo lá fora
e abrir espaço para o místico, para o onírico
E o trabalho mais ordinário, a função mais alienante e o cenário político mais sufocante não podem entrar.

MORTE E VIDA

Viver é sobre aprender a morrer.
Vida é movimento e, no tarot, A Morte representa a transformação.
A natureza nos ensina sobre isso o tempo todo. No pôr e no nascer do sol, na decomposição de um animal morto que fertilizará o solo, onde plantas que nascerão alimentarão outros animais, que, por sua vez, servirão também de alimento para seus predadores. O mundo está em constante movimento, sem resistência.
Para não dar spoilers, direi apenas que uma certa personagem fala sobre vivermos muitas vidas em uma única vida. Podemos inclusive, ter mais de um “amor de nossas vidas”, pois morremos constantemente, e nos tornamos outros. Assim como algumas almas não abandonam este plano quando desencarnam, nos apegamos às nossas vidas que já acabaram, aos amores que já não temos, aos tempos que já se foram.
Quando era criança, li pela primeira vez um poema de Cecília Meireles, Cântico IV, que hoje faz um pouco mais de sentido para mim.

“Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.”

É preciso deixarmos quem somos por quem podemos ser.

A vida é sobre aprender a morrer. Morrer dói e por isso aprender a viver não é fácil. Aquele que se apega ao que já foi, envelhece. Mas aquele que entende o fim de um ciclo e permite o inicio de outros, aquele que sabe morrer, será sempre jovem.

“Corre a lua porque longe vai, sobe o dia tão vertical. O horizonte anuncia com o seu vitral, que eu trocaria a eternidade por essa noite. Por que está amanhecendo? Peço o contrário, ver o sol se pôr.”

Produção de subjetividade

Reproduzimos morte. Formas de vida conduzidas por políticas, sistemas economicos, cultura, arquitetura, arte e urbanismo em função do capital. Repoduzimos práticas, cidades e moradias que limitam a vida e nos sufocam; tiram nossa juventude. Não há tempo para amar, se lançar ao imprevisivel, se jogar no mundo e viver. É tempo de produzir! É essa vida que os apartamentos de hoje edificam. Sua função é de dormitório para o trabalhador, de tamanho suficiente para necessidades básicas de manutenção da força de trabalho. Quanto menor, melhor, mais lucro. Além de otimizar os ganhos sobre o lote, esse tipo de moradia garante que não haja espaço para outras experiências do ser. Não o convida à contemplação, à experimentação de possibilidades do corpo no espaço, à reflexão, à criação. O mesmo que é feito com o espaço também é o com o tempo. A forma como o construímos encurta nossas vidas assim como a indústria faz com as vacas leiteiras, para que dêem mais leite, fazendo com que vivam menos do que deveriam. É até mesmo possível esquecer que um dia representa uma volta da terra em torno de si própria. Um dia é um dia de trabalho. Fragmentamos então nosso tempo na lógica da semana, trabalhando 5 dias para descansar dois. E assim vamos vivendo; uma semana após a outra. E assim envelhecemos. Perdemos nossa potencia de vida enquanto nos movemos na cidade-corredor, que se faz apenas de via para o movimento-pendular criado pela configuração espacial da mesma. A arquitetura produz entre cubículos e formas glamurosas e o design volta seus produtos realmente funcionais para as fábricas.

Vi uma entrevistas com um ex-participante de um reality show e ele contava o quanto eles perdiam a noção de tempo lá dentro. Os ferrenhos defensores do “mundo real” diriam: o tempo cronológico não é uma invenção, ele representa, por exemplo, a volta da terra em torno de si mesma ou em torno do sol. Bom, dentro do reality os participantes também estavam no mundo onde esses movimentos acontecem, mas vivenciaram-nos de maneira totalmente diferente.

A produção de subjetividade está para muito além do que queremos consumir e do que está na moda, está na forma como percebemos o tempo, como habitamos o mundo. Como sempre digo, a maior mentira sobre o “mundo real” não é que ele não pode ser outro, mas que ele é algo natural, uma verdade, enquanto não passa de um grande delírio, de uma grande invenção.

A Infância e o Tempo

Ser jovem é ser inconsequente.
É ser irresponsável. Não precisar se preocupar. É aproveitar a vida e viver por momentos. Quanto mais velhos ficamos, mais sabemos como o dia seguinte será. Menos a vida é aberta e imprevisível. As pessoas com as quais nos relacionamos são cada vez mais as mesmas. Os lugares que frequentamos; o que fazemos; nossos movimentos, experiências e sensações, no que pensamos e com o que sonhamos. O que podemos vir a ser. Parece que a distância entre os 10 e os 20 anos era muito maior do que a entre os 20 e os 30 parece agora. O número de possibilidades do que poderia acontecer nos próximos 10 anos parecia inacabável. O dia seguinte guardava muito mais surpresas. Lembro de ser criança e, sentado na beira da cama, antes de dormir, imaginava como arrumaria, no quintal, as peças de ferro da piscina de plástico, no dia seguinte, para criar uma linha de trem, pela qual eu andaria com meu velotrol. Aquilo era a única coisa que tomava minha cabeça e o futuro estava longe demais.

Ensaio para possível tema de TCC

Linguagem e Arquitetura

Linguagem como interface da comunicação

A perversão da linguagem

Em algum momento se toma o signo pelo… (?)  Como chamar o que está do outro lado da tela? O fluxo por trás do fluxograma, aquilo que a linguagem tenta comunicar. Em algum momento a imagem, que deveria representar algo, se torna mais importante do que o que esta pretendia, a princípio, representar.

Para mim, escrever é como desenhar. Não sou um bom desenhista ou ilustrador. Não consigo reproduzir fielmente aquilo que vejo. E não é desse desenho que estou falando, mas sim do croquis que gosto de fazer. Da capacidade de apresentar uma ideia com poucos traços, não somente ao outro mas à mim mesmo, enquanto trabalho-a. É um exercício de tradução através do qual acontece a criação. O entendimento de algo trazido para o jogo através de uma linguagem.

O que é a arquitetura se não uma linguagem? E assim como em todas as outras, há o risco de perder-se; de se prender à forma, à materialidade e à medida, e deixar de lado aquilo que se busca através destas. Desenhar afastado do escopo do projeto e, em última instância, deixar de estar no mundo, pensando o mesmo. A arquitetura não está no fetiche de suas formas, em suas proporções ou materialidades, usando-as de forma totalmente gratuita, mas sim no que a articulação destes elementos pode evocar. Na potência de seus elementos em intermediarem o mundo. E como pode um tradutor fazer uma boa tradução sem parar para prestar atenção ao que se diz?

Como a arquitetura pode ser uma possibilidade de rasgo no véu da consciência? Como a arquitetura pode ser uma linguagem intermediadora do mundo, da beleza, da natureza, da existência, da alma? Assim como a arte, a arquitetura dispõe do que é deficiente em algumas linguagens. A matemática e a filosofia, tão antigas e eficazes em traduzir o mundo, sendo regidas tão unicamente pela razão, em algum ponto, não bastam; não dão conta. É necessário então trazer pro jogo a fantasia, o desejo, o imaginário, o fantástico, a fabulação, o espiritual. Porque fazem parte de nossa existência e, portanto, do mundo. Diferente do marqueteiro que se passa por arquiteto e cria formas-produtos que precisa vender, outros usaram a arquitetura para traduzir, por exemplo, o sublime; o que se sente ao observar um raio, com toda sua grandeza e poder que podem matá-lo, e justamente aí está sua beleza. 

Meu interesse na arquitetura como linguagem se dá em paralelo ao interesse pelo habitar. Como habito o mundo, a cidade, a casa, o corpo, a terra, o céu que gostava tanto de olhar deitado na varanda e como a arquitetura, assim como essa varanda emoldurava esse céu e revestia de azulejo o chão para deitar-me as costas, pode ser agenciadora do habitar, seja na escala do urbanismo, da arquitetura ou do mobiliário?

Meu Rio de Janeiro Invisível

Esse texto foi escrito em outubro de 2017, para Júlia Lopes, em uma de suas disciplinas, filosofia, por um Rodrigo um pouco mais novo. Gosto de dialogar com este e vários outros de mim. A prática da escrita é uma ótima ferramenta de diálogo com outras versões de si. Estou escrevendo agora, em resposta ao Rodrigo mais novo, enviando impressões de mim ao Rodrigo mais velho. Envio sinais para que ele possa melhor me escutar e assim ter uma melhor comunicação comigo. Uma das muitas coisas maravilhosas que Julia me ensinou é que a infância não é apenas cronológica. Cada vez mais, vejo como, em outras formas possíveis de conceber o tempo, nada é. O texto à seguir tenta responder à proposta de narrar a própria cidade, a partir do livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino.


Meu Rio de Janeiro Invisível
O vazio criado pelo piso e paredes de azulejo é preenchido pelo barulho dos sinos de vento e enquadra um céu azul, no qual o sol já se encontra à esquerda ao final da tarde. É meu lugar favorito, principalmente nos dias de sol e vento fresco. O frio do azulejo é evocado pelo corpo que ali se deita para observar os aviões que passam eventualmente. Por curiosidade, não há aeroporto na cidade. É um mistério de onde eles vêm e para onde vão.
Em certo momento, a cidade começa a se tornar menos minha. O chão passa de azulejo para asfalto e divido este com os carros. Ainda assim, na maior parte do tempo, é o caminho mais confortável. As calçadas costumam ser estreitas e mal iluminadas. De manhã o fluxo de pessoas se torna insuportável e de noite o meio-fio trás uma sensação maior de segurança. Ferragens constituem a estrutura do transporte público, mas em essência ele é plástico. Molda-se de acordo com pessoas que vem e vão para outras cidades. Estas, são os amigos imaginários do Meu Rio de Janeiro Invisível, com os quais ele
dialoga constantemente. Em superposição, eles formam o todo, uma imagem completa da cidade que não pode ser capturada.


Outro dia, comprei de um artista vindo de algum outro país da América do Sul um disco que, pra falar a verdade, nunca escutei. Ele entrou no ônibus com uma guitarra e um pequeno amplificador onde conectava o instrumento e um microfone preso à cabeça. Comprei porque naquele momento me interessei pela música. Também me interessei pelas pessoas de fone no meio do “show” e pelo Rio de Janeiro invisível do forasteiro, que não pude conhecer. Se capturadas, as crônicas do “busão” dariam boas fotografias. O comércio, a “moral” que o “piloto” dá, permitindo que os comerciantes e artistas entrem por trás sem pagar passagem, a quantidade de pessoas que entram, e só entram, até passar o túnel, a solidariedade das reclamações coletivas quando o motorista não para no ponto para outro passageiro ou começa a andar com o ônibus enquanto ainda tem gente pra descer e também a falta dela com reclamações quando a demora para que um cadeirante embarque atrasa a viagem.

Muitas mudanças ocorreram com o tempo. Onde na zona sul, até meus 17 anos, existia areia, água e sal, há agora um edifício de dois andares; décimo e décimo primeiro, onde também encontrei um lar. Essas mudanças são produtos de trocas constantes entre o corpo e o espaço que, ao se atravessarem, produzem a minha cidade invisível. Um processo que acaba junto à mim, parte de um outro processo ainda maior, que me antecede e que continua quando eu me for. Nesse meio tempo, tento ser participante ativo dessa mudança. O elenco é grande e produz um incrível espetáculo, cada figurante, protagonista da sua própria cidade invisível, onde o figurante sou eu. Aqui, o protagonista que vos fala percebe certas diferenças nos lugares onde dizem ter Cristo, roda de samba e Maracanã. Na minha cidade a roda é punk, o lazer é no Bigode e o cartão-postal é a varanda da casa verde, com os azulejos e sino de vento. Passar muito tempo nesta última talvez seja a razão de morar em uma cidade pequena, onde só existem 3 linhas de ônibus; 692, 457 e 638.


Eu costumava andar por outras áreas, subir em morros que me davam visões diferente da cidade. Em uns, boca de fumo, fuzil e classe média alta se acabando em droga. Depois, outros que davam um panorama da cidade que nunca conheci de perto. Desses, podia ver de longe o tal Cristo e outros pontos turísticos que nunca visitei. A trilha, antes Pedra da Gávea, Telégrafo e Perigoso, agora é a rampa do estacionamento que me leva ao elevador, mas a vista para o Cristo permanece. O mais curioso para mim nessas mudanças que acontecem com o tempo é ver os mesmos atores assumindo outros papéis. Quem pra mim hoje é bandido, outrora fez papel de herói. Discursos extremistas que prometem soluções rápidas caem por terra quando se busca entender a cidade como processo. A visão sobre o problema muda quando este é incluído na sua cidade e pode ser visto por você. Por anos, deixei-os de fora e busquei soluções baseadas em cidades fictícias. É impossível entender a própria bolha de percepção olhando apenas para dentro dela, uma vez que ela influencia e é influenciada por múltiplas outras.


A Farani, assim como a Lapa, é um ótimo lugar para conhecer a cidade. Intermediadas por goles e tragos, as conversas nos bares promovem trocas potentes. Um dos meus favoritos é o Bar do Bigode. O preço da cerveja se encontra na média, a rua é movimentada e quase sempre sou atendido por um dos donos. Um deles, frequentemente, senta à mesa comigo e meus amigos para conversar. Fala da sua vida, dá sugestões sobre o cardápio e transparece sua vivência no local. Segundo ele, os bares dali ficavam aberto até de manhã, e ele, que largou o antigo trabalho por amor à vida noturna, bem gostaria que as
coisas ainda fossem assim. Porém, por conta de reclamações vindas dos apartamentos que ficam em cima dos bares, agora estes fecham mais cedo.

É muito forte ler esse texto depois de alguns anos, principalmente em um contexto de pandemia, onde me vejo numa vivência do espaço muito diferente da que é narrada no texto. A diferença dos estímulos anteriores aos de hoje se soma à diferença da minha resposta; como percebo o mundo e como respondo à este; como me coloco nele; como me expresso; como sou. Outro fator que torna a leitura desse texto, hoje, ainda mais interessante para mim, é ter acabado de ler o conto A Autoestrada do Sul, de Júlio Cortázar, indicado por Luame, professor da disciplina Repertório, qual Julia também leciona em outro período. O texto narra um episódio na vida dos personagens no qual suas rotinas são modificadas por um acontecimento: um trânsito de dias. A partir disso, se criam novas relações, organizações sociais, espaciais e econômicas, com diversos desdobramentos, como gravidez e morte.

Me questiono em algumas esferas. Numa mais ampla e externa, tento imaginar o que é a cidade. Do que é construída, além de asfalto, concreto e fachada de vidro? O quanto poderíamos tatear sua alma a partir de narrativas de Cidades Invisíveis de diversas pessoas em diferentes tempos? Já em uma esfera mais interna, me descubro em várias relações comigo mesmo não percebidas no dia a dia. Do que em mim sinto falta? Qual Rodrigo preciso perdoar? Com qual posso aprender? Com quais preciso me reconectar? São nessas situações que se tornam pertinentes as agonias; quando advém de elucidações que nos deixam ávidos a nos movermos.

Me desespero a fugir de onde estou
Escapar de tudo que me prende
E me limita
E me impede de ser
Me desespero em correr
Em direção à mim
E para isso
Quero correr de quem eu sou